e nós lá gaguejavamos o nome predicativo do sujeito, cheios de dúvidas, a hesitar. O professor escolhia um pêlo, desprezando-nos
- Nunca hás-de ser ninguém na vida
e o facto do nome predicativo do sujeito me impedir de ser alguém na vida preocupava-me. Que raio de importância tão grande o nome do predicativo do sujeito tem? Ou o ramal da Beira Baixa? Ou os afluentes da margem esquerda do Tejo? Meu Deus a quantidade de coisas que existem entre mim e o meu futuro. Outras frustrações: não usar óculos, nunca ter partido uma perna. Aparelho para os dentes sim, o que me compensava um bocadinho.
(...)
- Estás a olhar para ontem, idiota?
E é verdade, estou a olhar para ontem, sempre olhei para ontem. Até o amanhã é ontem às vezes. Charlie Parker interrompeu uma vez uma gravação, atirando com o saxofone, a gritar
- Já toquei isto amanhã
e ninguém foi capaz de convencê-lo a continuar. Como eu o compreendo, como às vezes sinto
- Já escrevi isto amanhã
e rasgo tudo. Um trabalho difícil, quase tão difícil como viver. Acho que não sei viver. Acho que não sei viver? Acho que não sei viver como os outros vivem. Que dias os meus, repletos de suspresas, de mistérios. De espantos. Sou um saloio: não há montra de loja que não me encante, sobretudo as lojinhas minúsculas de certos bairros, mercearias, roupas, brinquedos. Apetece-me logo comprar vassouras, aipo, um macaco de corda, a camisa mais feia que descobri na montra. A beleza das coisas feias fascina-me. O seu ar de desamparo, coitadas. (...)"
António Lobo Antunes, in Visão
1 comentário:
ai... vou reler isto ontem!
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