quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Rascunho: You is kind. You is smart. You is important.

Adoro caril. Por isso, quando me sentei no sofá, com um prato de lentilhas temperadas na mão para ver “The Help”, pareceu-me o serão perfeito. Um bom filme (assim o esperava) e um bom jantar caseiro. As lentilhas, no entanto, custaram a descer. Não porque o filme seja sangrento. Não. Muito pior, porque “The Help” nos tranca a garganta, nos faz cerrar os punhos, ranger os dentes de tanta indignação, de tanta vontade de entrar ali e mandar um par de estalos a uma dúzia de donzelas empertigadas.

Passado em Jackson, Mississippi, durante os anos 1960, em plena época de segregação racial, “The Help” fala dos criados negros que serviam a burguesia branca das cidades sulistas dos Estados Unidos e das humilhações que diariamente enfrentavam.

A verdade mais difícil de engolir é que eram aquelas mulheres, que os donos da casa não autorizavam que usassem a mesma casa de banho, que cuidavam dos seus filhos loirinhos. Trocavam-lhes as fraldas, ensinavam-lhes a comer, a falar, a andar. Era no seu colo que as crianças se aninhavam em busca de mimo ou conforto. O trágico é que, muitas vezes, essas mesmas crianças cresciam e repetiam os mesmos padrões de abuso e desrespeito dos pais.

Aibileen (numa magnífica interpretação de Viola Davis) é uma dessas criadas que dedica a vida a limpar e a cozinhar, e acima de tudo a cuidar de filhos alheios enquanto o seu sofria os desígnios da pele. A menina de quem toma conta é Mae, rolicinha e adorável, mas a quem a mãe pouco liga e tem até alguma vergonha. Mae não terá mais de dois ou três anos e Aibileen ensina-lhe uma cantinela que a pequena repete: “You is kind. You is smart. You is important”. Para que ela se convença.

O que vem perturbar a rotina daquelas mulheres é a chegada de Skeeter (Emma Stone). A jovem havia completado os estudos e regressado a casa, desejosa de encontrar a sua velha ama Constantine – que desapareceu sem deixar rasto, mas isso já são pormenores que não se revelam.

Skeeter diverge da opinião da maioria e sente-se incomodada com a forma como as amigas – agora casadas, infelizes e com filhos – tratam os empregados. Aspirando uma carreira em jornalismo, decide escrever um livro recolhendo depoimentos de dezenas de mulheres negras da cidade. O processo, claro está, não é simples, e a princípio ninguém quer falar – estamos em plena época da Klu Klux Klan e o que não faltavam eram casas a arder e corpos mutilados.

Apesar do medo, o livro vai ganhando forma e quando sai é sucesso de vendas. Mesmo sendo um drama, o filme não tem falta de cenas cómicas, provando que o humor é o recurso dos resistentes.

“The Help”, baseado no livro de Kathryn Stockett, não foi especialmente bem recebido nos Estados Unidos. Um tanto cliché, um tanto batido, dizem. Mas eu não sou americana, nunca estive em Jackson, não tive ama e só conheço a bandeira da confederação dos filmes. Talvez por isso aprove a produção.

Numa coisa têm razão: a heroína da história é uma miúda loira, universitária, idealista, de boas famílias, que salva o dia com o seu bom coração. Sim, isso é verdade. Mas mesmo que a história não convença (eu acho que convence), há outros motivos para ver “The Help”. Há Viola Davis, Octavia Spencer, Allison Janney. E há ainda todo um irresistível guarda-roupa dos anos 1960. Se quiserem ir por aí.

The Help | Tate Taylor, 2011

Rascunho: Pele da tua pele, sangue do meu sangue

A pele é aquilo que nos contém, que nos forma. Gostamos de acreditar que somos mais do que carne e osso, sangue, músculos, células, mas até que ponto a mudança daquilo que nos envolve muda aquilo que somos?

O mais recente filme de Pedro Almodóvar é uma bizarra, incorrecta e perturbadora história sobre a identidade humana, sobre auto-percepção e, em última instância, sobre o irresistível desejo de moldarmos os outros à nossa imagem.

António Banderas é desta vez Robert Ledgard, um gélido cirurgião com uma abordagem liberal às questões éticas. Há nele algo de inquietante, apesar de apelativo, e à medida que o filme avança é impossível não estabelecer ligações ao famoso Dr. Frankenstein. É que “La piel que habito” foi inspirado no romance francês “Mygale” de Thierry Jonquet, já descrito como “uma profana junção de Sade e Sartre” – conta a história de um médico que tem na cave de sua casa uma sala de operações secreta. A este já complexo cenário junta-se uma filha adolescente internada num asilo e uma bela jovem trancada a sete chaves.

Almodóvar pega nisto e cria algo entre o thriller e a poesia, uma macabra história de dor, esperança e amor, sempre envolvida num gigantesco complexo de Deus.

Levantemos um pouco o véu – mas não muito, que o filme é repleto de inesperadas reviravoltas. Começamos por ver Ledgard apresentar uma descoberta perante a comunidade científica: uma nova pele capaz de resistir ao fogo e às picadas de insecto. Chegado a casa – uma casa dessas de portas automáticas, tectos altos e televisões que transmitem imagens de câmaras de vigilância –, vemo-lo mexer em pipetas, olhar por microscópios, calçar luvas de borracha e batas de médico. Há sangue de animal envolvido, devidamente acondicionado. Estranhamos. Mas, afinal, é Almodóvar, por isso continuamos.

Há uma cena especialmente marcante, que traduz a excentricidade do filme, bem como o seu elevado carácter estético: é quando Ledgard observa a imagem de uma mulher nua, deitava de costas numa cama. A casa, que o espectador já havia percorrido com o médico, está repleta de grandes quadros de mulheres despidas. Por isso, naqueles segundos de contemplação, não sabemos se olha para uma perfeita pintura ou para um ser animado. Até que ela se move.

Esta bela jovem, que vive trancada num quarto da mansão, é constantemente observada pelo homem que, por esta altura, já suspeitamos ser um tanto ou quanto lunático.

Um flashback permite-nos descobrir que a mulher do médico havia morrido com severas queimaduras, após um acidente de carro. Fica explicada a sua obsessão em criar uma película especialmente resistente para revestir o corpo humano. Descobrimos também que a filha do casal, traumatizada com o acidente da mãe, sofre de severas perturbações do foro psicológico e acaba por se suicidar.

Por esta altura achamos que topámos Almódovar. Já percebemos onde ele quer chegar e as motivações do seu Frankenstein. Mas a verdade é que nada nos preparou para o que se segue, nem depois de “Habla con ella”. Explicá-lo seria estragar o filme, que ainda agora saiu, mas podemos adiantar que, à semelhança da produção de 2002, o realizador consegue pegar num gesto horrendo e transformá-lo numa espécie de acto de amor doente.

A jovem trancada no quarto é Vera, interpretada por Elena Anaya, que consegue combinar num corpo franzino uma fragilidade desconcertante e um felino instinto de sobrevivência. É ela o ratinho de laboratório de Ledgard – constantemente dividido entre o repúdio e a atracção – e é também ela que, em apenas quatro anos, viu a vida mudar por completo. Uma mudança tão grande que nem o nome restou de lembrança.

Marisa Paredes encarna a dedicada Marilia, a empregada que é também mãe do médico, apesar de ele não o saber. Tendo dado à luz dois filhos com comportamentos que roçam a psicose, desabafa um dia a Vera: “Tenho a loucura nas minhas entranhas”. Enquanto o diz aperta o ventre por segundos, retomando em seguida a tarefa de que fora incumbida: tirar da cama os lençóis embebidos em sangue.

“La piel que habito” junta mistério, drama, acção, ficção científica e toques de surrealismo. Faz pensar em Goya, faz lembrar o “Perfume” de Patrick Süskind, e traz-nos à memória todas essas obras de arte em que o mais terrível é, na verdade, o mais apelativo.

La piel que habito | Pedro Almodóvar, 2011

Rascunho: A vida por um batuque

Walter Vale é provavelmente a personagem principal de filme mais chata de sempre. Magro, careca, de óculos, casaco de fazenda, o professor universitário que há 20 anos ensina a mesma disciplina, exactamente da mesma maneira, tem no rosto tal ar de enfado com a vida e com as pessoas em geral que chega a irritar.

Um dia, sendo praticamente obrigado a comparecer numa conferência em Nova Iorque, Walter tem uma surpresa. Entra na casa que em tempos partilhou com a mulher – uma famosa pianista que já morreu – e descobre que um casal, ele sírio, ela senegalesa, ocupava o apartamento. Tarek e Zainab, que estavam ilegais no país, tinham sido enganados por um russo que lhes alugou a casa como se fosse dele. Os dois desfazem-se em desculpas e prontificam-se a sair de casa, mas Walter oferece-se para os acolher por uns tempos.

Tarek é músico, traz consigo um djambé que nunca larga. Zainab vende bijutaria numa feira de artesanato. Walter, que num gesto de homenagem à mulher, vinha a tentar aprender a tocar piano, interessa-me pelo djambé. Tarek é amistoso e a sua descontracção e musicalidade contrastam com a rigidez de Walter. Aos poucos, os dois desenvolvem uma amizade, sempre ligada pelos batuques do instrumento que o jovem sírio o ensina a tocar.

As cenas em que Walter toca djambé são verdadeiramente engraçadas. Todo o seu corpo desengonçado, as suas mãos sem fluidez, fazem-nos corar por tudo aquilo que somos uns nabos a fazer. Por seu lado, Tarek é todo ritmo e swing e quando o vemos num concerto de jazz num barzinho de bairro não nos surpreendemos com o sucesso que faz.

Zainab é menos dada. Toda a situação de morar por favor na casa de um estranho a incomoda. É calada e um pouco carrancuda. Mais tarde entendemos que tem motivos para ser desconfiada num país que não é o seu e onde a polícia não a tratou com meiguice.

Uma das melhores cenas do filme, apesar de totalmente secundária, é quando Zainab está a vender as suas jóias numa banquinha de feira e uma turista se aproxima. Os comentários paternalistas que faz perante as peças que integram uma certa estética africana deixam a jovem incomodada e nós também – será que já fizemos aquilo? A certa altura a potencial compradora pergunta-lhe de onde é. “Senegal”, responde. “Ah, estive na Cidade do Cabo, lindíssimo!”. Ao pagar deixa Zainab com o troco e com um “deixa estar” que soa a esmola. O espectador contorce-se na cadeira.

Mas voltemos à dupla musical. Um dia, ao entrarem juntos no metro, Tarek é preso. Walter faz o que pode, contrata um advogado, visita-o, mas não consegue tirá-lo do estabelecimento de correcção para onde foi enviado. O fantasma da deportação paira ameaçadoramente.

Aqui percebemos o quão importante Tarek e o djambé são na vida do solitário Walter. Entretanto, o professor recebe a visita da mãe do jovem sírio, Mouna, interpretada pela actriz Hiam Abbass, que imediatamente nos parece nova demais para ter um filho daquele tamanho.

A tensão vai aumentando à medida que os esforços de Walter não obtêm resultados. Tarek, que não havido cometido crime algum – bom, à excepção de ser ilegal num país estrangeiro – continua preso e começa a desmoralizar. As autoridades pouco explicam mas sabemos que, numa época pós 11 de Setembro, o facto de o jovem ser muçulmano faz com que seja automaticamente persona non grata.

É essa a moral de “The Visitor”, um filme que pretende criticar a política de imigração dos Estados Unidos, passar aquela mensagem que por detrás de nacionalidades estão pessoas e que cada um tem a sua história. Nesse ponto roça o moralismo e peca pela previsibilidade.

Mais interessante é a própria amizade entre os dois homens e algumas das cenas que partilham em torno do djambé. É fabuloso o momento em que Tarek leva Walter para uma roda de músicos junto à universidade. São mais de uma dezena, em alegre batucada, e o professor, sempre tão composto e reservado, acaba por se juntar ao grupo.

Walter não é, afinal, uma personagem chata. Ou melhor, é a sua chatice que o torna interessante, porque nos faz acreditar que até a pessoa mais dormente pode ganhar um novo fôlego se encontrar o ritmo certo.

Rascunho: Larga a sopa, João

Antes de mais, uma adenda: em geral, não sou fã de álbuns de música infantil lançados por artistas não dedicados à especialidade. Parece-me sempre coisa de moda, um experimentalismo que pode acabar giro mas fica sempre aquém dos outros CD.

No caso de “B Fachada é pra meninos”, mantém-se a ideia de que não serão estas as canções que vamos coleccionar, principalmente quando o autor se tem vindo a destacar pelo estilo interventivo – tendo sido até comparado a José Mário Branco, após o lançamento do mais recente álbum “Deus, Pátria e Família”.

“B Fachada é pra meninos” é um disco para crianças, mas que apela muito pouco ao típico universo infantil. E aí é que está a graça. Em entrevista, o músico disse ter-se apercebido que desde “Os Amigos do Gaspar”, de Sérgio Godinho (com quem já tocou diversas vezes), nenhum músico português tinha feito um disco interessante para os mais novos. E isso foi em 1989. Achou que já era tempo de alguém se pôr ao caminho.

Pois então aqui está, com dez canções, um álbum irónico composto para os filhos dos outros. Só assim talvez se explique o apelo à desobediência. “Tó Zé tu tem cuidado/ não sejas pau-mandado/ antes louco e malcriado que pensar só de emprestado/ toda a vida te vão dar o mundo já bem mastigado/ tu começa a praticar para não ficares moralizado”.

E se restavam dúvidas acerca do intuito das canções, repare-se nesta deliciosa brincadeira: “Larga a sopa João/ não comas mais/ não dês ouvidos às mentiras dos teus pais.” Tivesse a Joana ouvido B Fachada e ter-se-ia poupado a muitas colheres de papa.

O decoro e o bom comportamento são postos em causa em frases como “gente moralista nunca ajuda só despista” (“Tó-Zé”), “Porque é que é certo ser cara-de-pau, mas está mal ser filho-da-mãe?” (“Questões de Moral”) ou “Assustaram-me com um velho/ eu tento distinguir o bem do mal/ mas se a mãe é que decide sobre o meu comportamento/ que se lixe o Pai Natal” (“Dia de Natal”).

“O Primeiro Dia” conta com a voz feminina de Francisca Cortesão, com quem B Fachada partilhou campos de férias. A faixa apela ao imaginário desses dias sem aulas, junto à praia – “Fazer de conta que vivemos no Verão” – e ao doloroso regresso à escola – “Aulas novinhas em folha mas frutos velhos para dar”.

Apesar de esta ser uma temática nova para o músico, não deixa de ser reconhecível a sua impressão digital. Na voz, nas melodias, no ritmo, na escolha das palavras. A grande diferença está nos instrumentos: os xilofones, os pianinhos e as baterias de criança fazem essa ligação à infância que por vezes se perde nas letras, que podem fazer mais sentido para os adultos.

Ao contrário do seu mais recente álbum que tem dado que falar, o tal “Deus, Pátria e Família”, “B Fachada é pra meninos” é um disco que tende pouco para o conceptualismo e a música murmurada. É animado, como se quer para a criançada. Mas, como para toda a regra há excepção, “O Futuro”, a última faixa do registo, imprime um tom mais sério e reflexivo. “Vejo em toda a gente grande/ o que o tempo tem pra mim/ as pessoas que vou ser/ desde agora até ao fim/ Serei sozinho ou popular/ serei assim ou mais magrito/ serei pobre, avarento/ tolerante ou erudito?” Uma boa forma de se despedir. De nós e da infância.

B Fachada é pra meninos | B Fachada, 2011


Passos em volta: O Beco da realeza

É em reis e rainhas, nobres e princesas, que pensamos quando descemos a Calçada do Teatro. É imaginá-los a entrar para banquetes, festas e espectáculos, vestidos a preceito, de nariz no ar como nos romances históricos. A pompa não é coisa que me atraia, mas o conceito é tão raro por Macau que os olhos demoram-se nos edifícios de aura nobre.

De frente para o Teatro D. Pedro V, olhando a fachada austera, penso em todos esses romances de cordel, nas cortes, nas senhoras de braço dado a maridos mal-encarados, nas meninas que trocavam olhares clandestinos com rapazes altos e morenos.

Claro que por cá nada disto se passou, mas a imaginação é um recurso já bem conhecido pelas suas asas e que pouco quer saber de coordenadas de voo. O edifício é de 1860 e ganhou o nome do soberano da altura, o rei D. Pedro V, que se dedicou mais a África que ao Oriente. No entanto, tivesse sua alteza passado por cá, teria gostado. Tinha apenas 16 anos quando, em 1853, subiu ao trono e 24 quando o abandonou, vítima de febre tifóide.

O Teatro D. Pedro V foi o primeiro de estilo ocidental a ser construído na China. Coisa importante, herança pesada. O monarca deu o nome pelas artes nesta ponta do mundo, mesmo sem lhe conhecer os palcos.

Mas deixemo-nos de divagações que já lá vão mais de 150 anos. A grandiosidade daquelas colunas, naquele verde-água, com a rua em C ladeando o edifício, está lá. Sim. Mas isto é Macau, é uma Alfama em ponto grande, é cidade que não se deixa domar e se quer de improvisos. Que descuida de Shakespeare e da ópera.

Por isso aconselho a quem se perca perante a beleza clássica do D. Pedro V a descer da Calçada como quem descalça um par de sapatos de salto alto. Não basta olhar da varanda, ver as motas a passar na Rua Central. É preciso lá ir, tocar nas paredes amarelo-açafrão com janelas de madeira vermelho-china. E não vale descer a Calçada de Santo Agostinho, por maior que seja a tentação.

Segue-se pela Rua Central porque é assim mesmo que tem de ser. Porque entre a gráfica e a loja que vende “peixe dourado e tropical” (para morar em aquários, atenção), por entre talismãs e campainhas que felizmente já receberam muito uso, mora o irmão ilegítimo da calçada de tão faustoso teatro. É logo ali a seguir ao Beco Escuro (bastante claro, por sinal). Longe das luzes da nobreza, mas apenas a meia dúzia de passos de distância.

No Beco do Teatro o cenário é em miniatura, mas rico em pormenores. Espreitando a ruela apertadinha reconhecemos o parentesco: há escadaria e muito azul a pintar as paredes. No pequeno corredor cabem apenas dois prédios, aconchegados nas varandas gradeadas um do outro. Mas indicações não faltam. São três paredes que o formam? Pois então que sejam três as placas que o identificam. Porque o Beco do Teatro pode ser o parente pobre, mas nem por isso é menos orgulhoso.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Timeline

Sentia-se um zum-zum no carro. Não era ruído, era aquela vibração que a televisão faz quando está ligada, mesmo que muda. O som abafado da electricidade. Sentia-se. Fazia-me rir de nervosinho. Fazia-te pôr o pé no travão e dizer "vou parar tudo". Parámos tudo. Por umas horas o mundo deixou de ser cronológico e até geograficamente organizado. Eu cruzei as pernas no banco da frente e tu ajustaste o rádio. Perdemo-nos a caminho da estação.
A vida deu muitas voltas, realmente. E o tempo não volta para trás. Nós, felizmente ou não, já não voltamos para trás. Mas que bom que é, por momentos breves que sejam, voltar a terminar as frases do meu melhor amigo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Somos todos iguais. Sentada na mesa do restaurante a vê-lo falar, ouvi-me a mim própria. As mesmas questões, as mesmas desculpas, mas mesmas insatisfações. Somos todos iguais. O ser humano pode estar modelado, alterado, cada vez mais longe do seu estado natural, mas é nestas alturas que percebo que existe uma natureza humana - essa que gere as nossas emoções, o nosso coração. Isso confortou-me, de algum modo.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Rascunho - Ele é muitos

“You don’t have to write anything down to be a poet. Some work in gas stations. Some shine shoes. I don’t really call myself one because I don’t like the word. Me? I’m a trapeze artist.” Trapezista de palavras e de personagens, Bob Dylan transforma-se em muitos em “I’m Not There”.

O filme não é uma típica biografia mas uma manta de retalhos das várias fases e egos do cantautor. São seis os actores que o interpretam, mas poucos representam mesmo Dylan. As personagens têm nomes distintos e não são exactamente o autor – são distorções, alusões, mensagens. Curiosamente, a melhor interpretação de Dylan é feita por uma mulher.

Marcus Carl Franklin encarna Woody, um rapazinho afro-americano de 11 anos que simboliza a dívida de Dylan para com Woody Guthrie. Christian Bale é Jack Rollins, o guitarrista folk dos primeiros tempos. Ben Whishaw veste a pele do poeta Arthur Rimbaud, representando a mudança da fase política para a pessoal. Heath Ledger é Robbie, um actor que encarna o pior de Dylan: é egoísta, reaccionário, machista. Richard Gere interpreta Billy, um velho vagabundo que vive isolado. Cate Blanchett é Jude, o Dylan que fez a tour “Judas” por Inglaterra, onde trocou as músicas folk de protesto pelas guitarras eléctricas. Apenas Bale e Blanchett fazem interpretações directas de Dylan.

Se a explicação parece confusa é porque o filme em si é, de facto, confuso. É preciso saber muito da vida de Dylan para compreender todas as referências e é fácil perder o fio à meada com tantas caras diferentes, tantas histórias entrecortadas. Ainda assim é um prazer ouvir a discografia passar pelo ecrã. O filme abre com “Shakespere in the Alley”, passa por clássicos como “Tombstone Blues”, “Maggie’s Farm” ou “Mr. Jones”. “Like a Rolling Stone” só surge quando caem os créditos, o que não deixa de ser interessante.

É o Dylan de Cate Blanchett que mais cativa. Os maneirismos, os caracóis desalinhados, os óculos de sol, a roupa, está tudo lá. Aquele é um Dylan atacado pela imprensa, perseguido por fãs desiludidos que consideram que o ícone da música de protesto, a voz de uma geração, o trovador solitário, deixou de se preocupar. A necessidade de renovação do artista é mal vista por um público que continua a pedir-lhe que toque as antigas, que volte ao que era. Só que ele já não está lá.

O título do filme terá surgido de uma história que o jornalista inglês Michael Parkinson costuma contar. Um dia jantava num restaurante em Sidney quando vê, sozinho numa mesa, concentrado na refeição, nem mais nem menos que o homem que há muito tentava levar ao seu programa televisivo: Bob Dylan. Parkinson sabia do desagrado que o músico tinha por meios de comunicação mas decidiu tentar a sorte. “Aaaa, Mr. Dylan, eu…”. Antes de poder continuar, o quase-interlocutor atira com um “He ain’t here”. A resposta parece encerrar muito daquilo que Dylan é: enigmático e incapaz de deixar que o prendam ou definam.

Agora com 70 anos, o homem que inspirou os maiores movimentos sociais dos Estados Unidos e prolongou a sua voz muito além da década de 1960 ainda dá concertos, mas não é a mesma coisa. A voz falha e a presença também, mas há coisas que, para já, nunca mudam. “Never tired, never sad, never guilty”. É Dylan.

I’m Not There | Todd Haynes, 2007

Rascunho - Até cair

Após apenas uma temporada, “Skins” foi cancelada nos Estados Unidos. Óbvio. Não sei quem foi que se lembrou que a série adolescente mais gráfica da história poderia passar nos televisores americanos.

Ora vejamos: são miúdos de 15, 16, 17 anos que consomem drogas várias, bebem até cair, têm comportamentos sexuais promíscuos, mentem, enganam, traem, faltam às aulas e frequentam locais pouco recomendáveis.

“Skins” é isto tudo e muito mais. Muito, muito mais. Só do Reino Unido poderia nascer produção tão despudorada – afinal é a terra de “Shameless” e “The Scheme”. É ténue a linha entre o exagero gratuito e a interessante análise de uma geração de adolescentes deixados à solta pelos pais. Dizer que a série foi polémica é eufemismo, mas há algo naquelas personagens que cria uma empatia, um sentimento de reconhecimento que se torna magnético. Vá lá, pelo menos para alguns.

As seis temporadas são passadas na cidade de Bristol, sul de Inglaterra. Ah, e como é refrescante que não seja Beverly Hills. Como é bom ver as casinhas típicas de classe média, o céu cinzento, os bares sem pinta e a degradação humana sem toques cool.

Os miúdos de “Skins” não são meninos da mamã, mas também não são de nenhum bairro problemático, não vêm do mundo do crime, nem nada que se pareça. Estudam numa escola pública normal, igual às que existem em todas as cidades do mundo. Com a excepção de que Bristol é daqueles sítios onde os pais bebem demais e os filhos não têm vergonha de aparecer a cambalear em casa.

Estão lá todos os ingredientes necessários a uma série sobre adolescência: amor, sexo, amigos, saídas à noite. E ao longo das temporadas são várias as temáticas sensíveis, desde famílias disfuncionais, homossexualidade, anorexia e outras doenças do foro psicológico, abuso de substâncias e até a morte.

“Skins” é uma série tóxica e, no entanto, viciante. Aqueles miúdos somos nós, as nossas crises de adolescência (as nossas crises de idade adulta?), as nossas fragilidades, medos, irritações, angústias, curiosidades. A diferença é que a vida deles é muito mais emocionante do que a nossa foi. É tão emocionante que nos espanta como não há mais deles a adoecer, engravidar, ter overdoses ou mesmo morrer.

A série está organizada de forma a que, quando as personagens chegam ao fim do último ano de liceu e saem da cidade para iniciar a universidade, entram outras, que normalmente são os irmãos mais novos. Quando isto acontece há uma renovação quase total do elenco e inicia-se uma narrativa nova. Com isto em mente deixo um conselho: não vale a pena ver além das duas primeiras temporadas. Claro que, depois do estado inebriante em que deixam o espectador, não há quem resista a aventurar-se na terceira. É como dizer “não olhes para baixo”. Mas a verdade é esta, as novas personagens mais não são que uma repetição mal amanhada das primeiras. Ainda assim, depois de se ter começado, leva-se a coisa até ao fim, por mais duas temporadas. Quando a quinta começa, introduzindo novas personagens, já ninguém incorre no mesmo erro.

Voltando ao início. Os verdadeiros miúdos de “Skins” (sim, porque os verdadeiros são só esses que abrem o genérico) não são de fácil empatia, mas ganha-se por eles verdadeiro carinho. Tony, o líder do grupo (mais tarde será a sua irmã Effy a assumir o lugar) é um narcisista insuportável que manipula os amigos e namorada para conseguir tudo o que quer. Vão odiá-lo, mas não vai durar para sempre. Cassie é a personificação do excêntrico, fica ali a roçar o desvio mental, mas de uma forma fascinante. Sid é amor à primeira vista – pelo menos para quem se enternece com a falta de skills sociais, com gente que se atrapalha, diz sempre o que não deve, veste a roupa do avesso e, no fim, perde sempre a miúda para um gajo de olhos azuis.

Um pormenor interessante da série é Anwar, indiano muçulmano, que tal como os outros, sonha com raparigas e bebe até cair aos sábados à noite. Com a bênção de Alá.

Os miúdos de “Skins” não são bem fixes. São o melhor e pior de um país. São um exagero. E o que vale é que não os vamos ver crescer.

Skins

Bryan Elsley e Jamie Brittain, 2007

sábado, 3 de dezembro de 2011

Rascunho - A morte do cupido

Que a rotina é assassina da paixão, já todos sabemos. Mas não nos filmes. Caramba, não nos filmes. Ryan Gosling e Michelle Williams são os dois tão bonitos, tão jovens, tão frescos, tão adoravelmente apaixonados nas personagens de Dean e Cindy, e depois é o que se vê.

A coisa começa bem, como sempre. A história de amor enternece e acaba com ela grávida e com um casamento em cima do joelho, mas ainda assim romântico. Os dois conhecem-se nos primeiros anos da Administração Bush e a história termina com a chegada de Obama, mas a política é irrelevante para o caso. Quando o país respirava esperança e era tudo “Yes, we can”, o casal vivia o fim do sonho.

Passados seis anos do início de tudo, Frankie, a filha, já corre pelo jardim. Dean está quase careca e quase alcoólico, e Cindy abusa da bata de enfermeira e já não usa soltos os longos cabelos loiros. Entre o casal há aquela tensão insuportável de ‘já não te posso ver à frente e nem sei bem explicar porquê’. Ela irrita-se com a falta de ambição do marido, ele entristece-se com a ausência de espírito de fada do lar.

“Blue Valentine” fala da inevitabilidade do fim das relações. Não acontece nada, não há tragédia, morte ou traição. Apenas a vida a corroer, a desgastar. O tempo que pesa no corpo, um dia belo, agora banal.

Tanto Williams como Gosling oferecem excelentes interpretações. A actriz pela forma contida como faz mover a personagem – Cindy é tão reservada no seu modo de estar que ficamos sinceramente surpreendidos com algumas revelações e reacções, o que é raro acontecer nos filmes. Um exemplo é quando, questionada pelo médico, conta com quantos anos iniciou a vida sexual e quantos parceiros já teve. Bem mais tarde, num momento de desespero, o grito “I am so out of love with you!”, que não pretende ser uma ofensa, mas uma confissão, deixa o espectador desarmado.

Williams encarna uma Cindy que constantemente rejeita o marido, que não suporta a aproximação, que mexe o corpo todo de forma a fugir ao seu abraço desconfortável. Aquela repulsa muda, ainda por cima por um marido desesperado por agradar, é tão real, tão real, que facilmente a relacionamos com gente que conhecemos.

O papel em “Blue Valentine” valeu a Michelle Williams uma nomeação para o Oscar de Melhor Actriz, mas Ryan Gosling não teve a mesma sorte. O que é de uma imensa injustiça – é soberba a interpretação que faz de Dean, um homem que rasteja aos pés de uma mulher que já nem tem a certeza de amar. A crença quase infantil na força da família, nos votos do casamento, no amor, é enternecedora mas também revoltante.

Dean faz de Cindy a má da fita mas nós sabemos que não é. A culpa ali não é de ninguém. Mas é ela, a culpa, a verdadeira personagem principal de “Blue Valentine”, uma presença constante, sem corpo, que enche cada minuto do filme.

Como última cartada para salvar o casamento falhado, Dean leva Cindy para um motel barato – aquele que o seu salário como empregado de uma empresa de mudanças consegue pagar. A ideia era o casal ter uma noite a sós, uns momentos de intimidade sem interrupção, mas a coisa corre mal, tão mal. No entanto, nem aí Dean deixa de ser um esperançoso crónico. De uma lista de excêntricos (e duvidosos) quartos temáticos, escolhe aquele que lhe parece mais auspicioso: o Future Room.

Blue Valentine

Derek Cianfrance, 2010

Rascunho - Rachel pouco importa

Se há tema consensual no cinema e na literatura é o das famílias disfuncionais. Afinal, quem não tem uma? Irmãos, pais, tios, primos, todos contribuem para uma insanidade colectiva que afecta a Humanidade em geral.

É a apelar a esse universo próximo que “Rachel Getting Married” se apresenta: a mais nova da família, problemática, alcoólica, regressa a casa por um fim-de-semana para o casamento da irmã. Até aí tudo bem. Sejamos sinceros, até aí, tudo um pouco aborrecido.

Em 2009, Anne Hathaway, que interpreta a personagem principal, foi nomeada para o Óscar de Melhor Actriz, mas já se adivinhava que não seria vencedora – concorria com Kate Winslet no filme “The Reader”. No entanto, a prestação de Hathaway, que aqui se apresenta como “Shiva, the destroyer”, não é de ignorar.

A coisa mais curiosa de “Rachel Getting Married” é que o filme não é sobre Rachel nem sobre o seu casamento. Eles estão lá, sim, mas quem ocupa o ecrã em toda a sua extensão é Kym, a irmã.

Há qualquer coisa estranha em Hathaway que combina com Kym. Aqueles olhos gigantes e negros, a boca desproporcional, a pele muito clara. É bonita? Não é bonita? O constante mudar de opinião ajuda ao tom do filme: gostamos ou não de Kym? Por um lado, não é de admirar que não tenha paciência para aquela família eternamente compreensiva, carinhosa, protectora, tolerante, correcta. Por outro, ora essa, que mimada egoísta hostiliza aquela família eternamente compreensiva, carinhosa, protectora, tolerante, correcta?

Jonathan Demme protege o filme da banalidade do alcoólico-que-é-o-fardo-da-família-mas-que-no-fundo-toda-a-gente-adora ao utilizar um estilo que, apesar de não ser único, é bastante original. Demme, que realizou “The Silence of the Lambs”, dá bom nome ao liberalismo de Hollywood. Em “Rachel Getting Married”, o realizador projecta uma imagem utópica de uma América difícil de encontrar. Além de Rachel estar noiva de um afro-americano, músico e de família religiosa, todo o casamento integra uma misturada de ingredientes étnicos que, ou são encarados como ‘snobice’ esquerdista, ou se aceitam com o mesmo carinho que demonstramos quando vemos uma criança vestida de rosa-choque, plumas, rendas e brilhantes – fica-lhe mal, mas até é querido.

O casamento de Rachel tem tudo: a noiva e as damas de honor vestem saris indianos, o noivo canta à capela, há meninas a dançar samba, marcha nupcial alternativa, danças tradicionais de países exóticos, uma tenda no jardim e uma série de roupa que não se percebe bem de onde vem. Apesar de entrar pelo ecrã adentro, este multiculturalismo exacerbado nunca é referido e não tem qualquer interferência no desenrolar da história.

Na véspera da cerimónia os convidados juntam-se para o ensaio. Testam-se brindes, bandas e valsas. Os diálogos são longos de mais, os solos de guitarra também, um pouco como num filme de casamento caseiro. Numa situação normal as cenas seriam cortadas e montadas à medida mas, desta forma, claramente intencional, dá-se um certo toque europeu ao filme. Um charminho que cai bem, para cortar o típico melodrama da irmã incompreendida e revoltada que pertence a uma família que carrega um trágico segredo.

No final, Rachel casa e Kym volta para clínica de reabilitação. A tocar por uns bons minutos fica a banda sonora, um dos pontos mais positivos do filme.


Rachel Getting Married

Jonathan Demme, 2008

Rascunho - Nos bastidores da TV

Porque é que “Studio 60 on the Sunset Strip” só teve uma temporada, não sei. Apesar de cinco nomeações para os prémios Emmy em 2007, a produção parece não ter conseguido atrair um número de audiências desejado. Pena.

Não é uma série de culto, nem de peso político ou dramático, mas basta dizer que é da criação de Aaron Sorkin, o homem por detrás de “West Wing”, para que não restem dúvidas sobre a sua qualidade.

“Studio 60” é um programa dentro de um programa. Uma equipa de televisão gere diariamente algo como um “Saturday Night Live”, um momento televisivo ao vivo, de comédia (política e não só) e variedades. Sim, já sei, esta é a descrição do popular (e brilhante) “30 Rock”, de Tina Fey. É. Mas apesar das semelhanças de argumento, “Studio 60” foge totalmente ao formato e ao tom de “30 Rock” – uma comédia que vive da auto-ridicularização das personagens.

Não, “Studio 60” não é bem assim. Não é comédia mas tem graça e algum drama. No primeiro episódio, dois amigos regressam à televisão: Matt Albie (Matthew Perry, famoso pelo seu papel como Chandler Bing em “Friends”) e Danny Tripp (Bradley Whitford, que Sorkin foi buscar a “West Wing”, onde interpretou o incontornável Josh Lyman). Matt é argumentista e Danny produtor do programa que tem o mesmo nome da série.

À semelhança do próprio “Saturday Night Live”, “Studio 60” lida com o controverso mundo televisivo num país pautado pelas aparências. A sátira, aquela provocação que só o humor inteligente consegue produzir, é constantemente motivo para confrontos entre a administração e os criativos, num (pouco) subtil apontar de dedo à hipocrisia da terra – onde a política é sensível, os valores pudicos e a crítica à nação vista como um acto de terrorismo.

Outras personagens compõem o elenco. Harriet, a problemática paixão de Matt, é talvez a mais relevante. Actriz num dos programas televisivos mais polémicos da televisão americana, talentosa, acutilante, hilariante a fazer imitações, tem uma característica desconcertante: é uma católica fervorosa.

A fé e o fiel cumprimento dos mandamentos da Bíblia fazem dela uma personagem fascinante. Principalmente se tivermos em conta que mantém um conflituoso romance com o instável, cínico, provocador, por vezes indecente, Matt. A sua total descrença numa força divina, no Bem, ou em seja o que for que imprima constância e conforto à vida alheia, colocam-no em quase permanente conflito com a namorada. O brilhantismo dos diálogos, que dão voz às discussões dos dois, já são motivo suficiente para ver a série.

Uma nota curiosa: dizem as más línguas que a relação de Matt e Harriet é baseada na relação de Sorkin com a actriz Kristin Chenoweth, que interpretou a republicana Annabeth em “West Wing”. Um círculo perfeito.

“Studio 60” não será uma obra-prima, mas estão lá todos os ingredientes para umas horas bem passadas. Amizade, amor, camaradagem, política, humor. E para quem gosta dessas coisas, um fascinante insight dos bastidores de um programa televisivo de humor, que acompanha as mesas redondas, os temas da semana, as crises de criatividade, os prazos, as contagens decrescentes e toda essa tensão até ao acender da luz “No Ar”. Motivos suficientes para que merecesse mais de 22 episódios.

Studio 60 on the Sunset Strip

Aaron Sorkin, 2006

Rascunho - Viena de esperança

As viagens de comboio já apelam ao romantismo, mas em “Before Sunrise” ganham toda uma nova dimensão.

O início é simples. Ele (Ethan Hawke) vê a capa do livro dela. Ela (Julie Delpy) pergunta pela dele – lia Hemingway, já agora – e a conversa flui. Flui tanto que em poucos minutos, já na carruagem-restaurante do comboio de longa distância, não querem que o diálogo acabe. Nem eles, nem nós.

Jesse, turista americano, dirigia-se a Viena para apanhar o avião de volta aos Estados Unidos. Celine viajava em direcção a Paris, depois de uma visita à avó, em Budapeste. Quando o comboio chega à capital austríaca, ele lança-lhe a proposta: vem comigo. Ela hesita, mas é tudo bluff.

O voo é só na manhã seguinte e os dois têm 14 horas para passear pela cidade. Ao nascer do sol, vai cada um para seu lado – ou pelo menos é esse o plano.

Quando estreou, em 1995, “Before Sunrise” foi um discreto sucesso do cinema indie. Nada ali enche o olho hollywoodesco. A câmara de Richard Linklater é meiga e pouco intrusiva. É o que é dito entre os dois, e não o que acontece, que realmente importa.

A tirania do relógio não os/nos larga. O espectador quase consegue ouvir a areia a deslizar pela ampulheta, grão a grão, a uma velocidade estonteante. Viena é linda, está linda, e eles passam por ela com uma suavidade quase poética. Apaixonam-se. Um tipo de amor que talvez só exista na bolha do “só temos esta noite”. Perfeito. “When the morning comes, we turn into pumpkins.” Não é tanto, mas quase.

Na hora do adeus, de volta à estação de comboios, os dois despedem-se. Decidem não trocar contactos. Acreditam na magia. Numa era pré redes sociais, a decisão é drástica.

Num momento de fraqueza, entre abraços apressados, combinam encontrar-se naquele exacto lugar, dali a seis meses. Descem os créditos. O espectador já mordeu pelo menos três dedos e uma caneta.

E depois, oh, esperança. Há uma sequela. “Before Sunset” é filmado nove anos mais tarde. E é também esse o período de tempo que passa até Jesse e Celine se voltarem a ver.

Aqui deixo a ressalva: nesta espécie de segundo capítulo, o romantismo encara a dura face da realidade, e aquele estado de levitação em que nos encontramos no final do primeiro filme não se repete.

Não houve encontro em Viena, seis meses passados da aventura. Porque a vida real é assim, as coisas acontecem, responsabilidades, azares, desilusões, até falta de dinheiro. Um deles aparece, mas é melhor não revelar quem.

Nove anos depois é Paris a cidade que acolhe o reencontro, quase acidental. Jesse, agora um escritor de sucesso, usa umas camisas feiotas, e Celine, activista numa organização ambiental, tornou-se cínica e um tanto paranóica – ou talvez apenas desacreditada.

“Before Sunset” acontece em tempo real. Os dois passeiam pela cidade, antes de ele ter de apanhar o avião – há coisas que nunca mudam. A água, essa que se diz que passa debaixo das pontes, passou por ali e em quantidade. Queremos uma reconciliação, mas assim, à filme, não pode ser.

O tempo escapa-se, eles olham o relógio, e a pergunta torna-se impossível de conter: e se..? Como seria a vida dos dois, se tivessem regressado àquela estação?

O fim aberto confere algum consolo às almas mais românticas. Mas acima de tudo há um tom melancólico e triste no final da sequela. Um luto pela inocência que se perdeu, que todos vamos perdendo.

O jornal The Guardian considerou “Before Sunrise/ Before Sunset” o terceiro melhor filme de amor de todos os tempos. Justiça lhe seja feita. | Inês Santinhos Gonçalves

“Before Sunrise”

Richard Linklater, 1995

e

“Before Sunset”

Richard Linklater, 2004