quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Rascunho: A vida por um batuque

Walter Vale é provavelmente a personagem principal de filme mais chata de sempre. Magro, careca, de óculos, casaco de fazenda, o professor universitário que há 20 anos ensina a mesma disciplina, exactamente da mesma maneira, tem no rosto tal ar de enfado com a vida e com as pessoas em geral que chega a irritar.

Um dia, sendo praticamente obrigado a comparecer numa conferência em Nova Iorque, Walter tem uma surpresa. Entra na casa que em tempos partilhou com a mulher – uma famosa pianista que já morreu – e descobre que um casal, ele sírio, ela senegalesa, ocupava o apartamento. Tarek e Zainab, que estavam ilegais no país, tinham sido enganados por um russo que lhes alugou a casa como se fosse dele. Os dois desfazem-se em desculpas e prontificam-se a sair de casa, mas Walter oferece-se para os acolher por uns tempos.

Tarek é músico, traz consigo um djambé que nunca larga. Zainab vende bijutaria numa feira de artesanato. Walter, que num gesto de homenagem à mulher, vinha a tentar aprender a tocar piano, interessa-me pelo djambé. Tarek é amistoso e a sua descontracção e musicalidade contrastam com a rigidez de Walter. Aos poucos, os dois desenvolvem uma amizade, sempre ligada pelos batuques do instrumento que o jovem sírio o ensina a tocar.

As cenas em que Walter toca djambé são verdadeiramente engraçadas. Todo o seu corpo desengonçado, as suas mãos sem fluidez, fazem-nos corar por tudo aquilo que somos uns nabos a fazer. Por seu lado, Tarek é todo ritmo e swing e quando o vemos num concerto de jazz num barzinho de bairro não nos surpreendemos com o sucesso que faz.

Zainab é menos dada. Toda a situação de morar por favor na casa de um estranho a incomoda. É calada e um pouco carrancuda. Mais tarde entendemos que tem motivos para ser desconfiada num país que não é o seu e onde a polícia não a tratou com meiguice.

Uma das melhores cenas do filme, apesar de totalmente secundária, é quando Zainab está a vender as suas jóias numa banquinha de feira e uma turista se aproxima. Os comentários paternalistas que faz perante as peças que integram uma certa estética africana deixam a jovem incomodada e nós também – será que já fizemos aquilo? A certa altura a potencial compradora pergunta-lhe de onde é. “Senegal”, responde. “Ah, estive na Cidade do Cabo, lindíssimo!”. Ao pagar deixa Zainab com o troco e com um “deixa estar” que soa a esmola. O espectador contorce-se na cadeira.

Mas voltemos à dupla musical. Um dia, ao entrarem juntos no metro, Tarek é preso. Walter faz o que pode, contrata um advogado, visita-o, mas não consegue tirá-lo do estabelecimento de correcção para onde foi enviado. O fantasma da deportação paira ameaçadoramente.

Aqui percebemos o quão importante Tarek e o djambé são na vida do solitário Walter. Entretanto, o professor recebe a visita da mãe do jovem sírio, Mouna, interpretada pela actriz Hiam Abbass, que imediatamente nos parece nova demais para ter um filho daquele tamanho.

A tensão vai aumentando à medida que os esforços de Walter não obtêm resultados. Tarek, que não havido cometido crime algum – bom, à excepção de ser ilegal num país estrangeiro – continua preso e começa a desmoralizar. As autoridades pouco explicam mas sabemos que, numa época pós 11 de Setembro, o facto de o jovem ser muçulmano faz com que seja automaticamente persona non grata.

É essa a moral de “The Visitor”, um filme que pretende criticar a política de imigração dos Estados Unidos, passar aquela mensagem que por detrás de nacionalidades estão pessoas e que cada um tem a sua história. Nesse ponto roça o moralismo e peca pela previsibilidade.

Mais interessante é a própria amizade entre os dois homens e algumas das cenas que partilham em torno do djambé. É fabuloso o momento em que Tarek leva Walter para uma roda de músicos junto à universidade. São mais de uma dezena, em alegre batucada, e o professor, sempre tão composto e reservado, acaba por se juntar ao grupo.

Walter não é, afinal, uma personagem chata. Ou melhor, é a sua chatice que o torna interessante, porque nos faz acreditar que até a pessoa mais dormente pode ganhar um novo fôlego se encontrar o ritmo certo.

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