“Are you happy in your life?”. Poppy sorri, diz que sim, claro sim, mas porque não havia de ser? A resposta, no entanto, nunca satisfaz. Como é feliz se aos 30 anos está solteira, divide casa alugada no norte de Londres com uma amiga e mantém um emprego de educadora de infância?
Não se sabe bem sobre o que trata “Happy-Go-Lucky”. E cada um tirará uma moral na altura dos créditos. Por mim, diria que o filme de Mike Leigh aponta o dedo à obsessão social de “ter de fazer alguma coisa”.
Poppy não é deslocada da realidade, nem louca, nem parva. É feliz. Desvaloriza os problemas, encontra alegria nas pequenas coisas. Nos alunos, nas amigas, nas aulas de flamenco, no trampolim. A tudo o que é dito responde com uma gracinha ou um trocadilho – “here we go, gigolô” – o que poderia ser irritante, não fosse a sua adorável ingenuidade. Em tudo Poppy encontra motivo para uma risada.
Não é bonita nem feia, ostenta um guarda-roupa absolutamente despropositado e a sua eterna predisposição para a brincadeira gera alguns momentos desconfortáveis – afinal, nem toda a gente aceita graçolas de um estranho.
Nada especialmente relevante acontece nos 118 minutos de “Happy-Go-Lucky”. No entanto, o filme é tudo menos aborrecido. Vamos conhecendo os amigos, familiares, colegas de trabalho e alunos, num instantâneo da vida corriqueira de uma pessoa normal – se algo de normal há em se ser despudoradamente feliz. O fio condutor da história manifesta-se nas aulas de condução que a personagem principal, brilhantemente interpretada por Sally Hawkins, vai frequentando.
O instrutor, Scott, é um homem paranóico, agressivo e racista que acaba por desenvolver uma obsessão por Poppy. Ela, claro, leva-o à loucura por insolentemente fazer pouco de todas as suas regras – incluindo a de não usar botas de salto alto para conduzir. Scott é um anti-sistema, revoltado com a educação, com a política, com o mundo. A resposta dela é sempre a mesma: uma risada desarmante – bom, até ao dia, mas já lá vamos. Numa das várias vezes em que o instrutor explode dentro do carro, diz-lhe: “You can make jokes while you’re driving but you will crash and you will die laughing”. A resposta deixa-o ainda mais fora de si: “Well, if you got to go, that’s the best way to go, I suppose”.
O ambiente não é adocicado. Apesar de se avistar o colorido mercado de Camden, as bicicletas e livrarias que fazem parte do charme da capital inglesa, não há equívocos sobre se Poppy mora nos subúrbios – a escola onde trabalha, os alunos, a sua casa, as amigas e os bares que frequentam, são todos despretensiosamente representados. A boa disposição de “Happy-Go-Lucky”, que está longe de ser uma comédia mas é um dos melhores “feel good movies” dos últimos anos, vem toda do olhar que Poppy lança sobre o mundo.
Se Mike Leigh queria deixar passar uma moral, ela com certeza que está encerrada na cena em que Poppy encontra um sem-abrigo, numa zona pouco recomendada da cidade, à noite. O homem, de barba e roupa desfeita – como se quer um sem-abrigo – balbucia palavras meio em jeito de canção. Sempre as mesmas, indecifráveis. Ela aproxima-se. “You know what I mean, you know?”, ele pergunta. “I know!”, Poppy prontamente responde. O homem continua: “It’s, it’s, it’s, it’s it’s it’s…!!”. “Isn’t it, just?”, ela concorda. A conversa prolonga-se por alguns minutos, ali sempre entre o insólito e metafórico. Nessa noite, ao chegar a casa, a saltitante professora está, por uma vez, triste.
A cena mais tensa do filme revela-se no confronto final com o instrutor de condução, quando a paranóia de Scott se torna incomportável e mesmo violenta. No choque entre a agressividade dele e a compaixão dela há uma subliminar crítica a uma sociedade reprimida e instrumentalista, que há muito perdeu a capacidade de lidar com o que é simplesmente bom.
“Happy-Go-Lucky” é um daqueles filmes em que estamos sempre à espera que aconteça alguma coisa. Que se descubra um segredo, que aconteça uma tragédia. Que o espírito esfuziante de Poppy seja, na verdade, irónico. Mas não. Ela é genuinamente alegre – não há ali gota de sarcasmo. De alguma forma, isso deixa o espectador desconfortável, sem saber como absorver tanta honestidade de sentimentos. E essa é talvez a maior ironia de todas.
Happy-Go-Lucky. Mike Leigh, 2008
1 comentário:
Recomendaram-me o filme. Disseram-me que tenho muito da Poppy, mas ainda não tive coragem de ver... talvez veja agora.
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