terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Bonifácio regressa à blogosfera

Um dos "críticos de música" que mais gosto de ler é João Bonifácio. Porque é imprevisível, definitivamente louco, hilariante nas entrevistas, meticuloso nos adjectivos. Gosto de o ler mesmo quando não conheço as bandas ou os CDs. Diverte-me. E imagino-o sempre com aqueles óculos tortos na cara.

Hoje voltou a dar o ar da sua graça na blogosfera. Adorei:

"Há discos que não se ouvem de manhã, outros que pela noite se tornam insuportáveis. Alguns só servem acompanhados de pessoas, e uns quantos não permitem companhia. Para cozinhar há discos muito úteis que, em outras situações, se revelariam incipientes. E mesmo para tomar banho há canções mais indicadas que outras (ok, confesso: refiro-me a "Dancing Queen", dos Abba).

Nunca ouço o "Music For a New Society", do John Cale, com as suas gélidas paisagens quase inumanas, antes das duas da matina. Já o "Homem na Cidade" de Carlos do Carmo apetece-me apenas quando madrugo: deixo aquela voz de tremenda hombridade atravessar a neblina e ir buscar a manhã, depositá-la na varanda e os fados tornam-se plena alegria. Não me ocorreria fazer isto com uma canção como o "Girls and Boys", dos Blur, que precisa de copos e gente. O Gardel obriga-me sempre a recorrer a camisas de linho - é curioso como no verão tenho sempre vontade de américas latina: adocicam-me as caipirinhas.

Nisso, os discos são como as pessoas. Não há pessoas, nenhuma pessoa, adequada para todas as horas. Quando muito uma que sabe ser mínimo denominador da maior parte das horas, que sabe a que horas ir e a que horas voltar, difícil ciência de ser âncora sem pesar muito ao barco. Mas isto, quando muito, acontece com uma pessoa. As outras são como os discos: têm dias, e acima de tudo têm horas.

Há aqueles amigos com quem só bebemos copos, e mesmo esses têm um tipo de copos específico. O amigo com quem almoçamos (mas nunca jantamos) e que é íntimo a falar da sua cozinha, mas nunca menciona o quarto. E aquele com quem jantamos (e nunca almoçamos): pouco fala da cozinha, é mais propenso a relatos de quarto. Existem os que falam de cinema, os que só querem falar de livros, os que só falam de discos. A maior parte dos amigos são de rua: vamo-los encontrando. Os amigos de sala de estar estão. E isso chega. Para cada pessoa descobrimos um momento, uma altura, em que nos sabem bem. Fora disso, népia.

Também assim com os discos, mas quando se é pago para ouvir discos descobre-se que nem sempre os discos têm os horários que ao princípio lhes atribuímos. Discos para os quais não imaginávamos hora alguma revelam-se fiés companheiros de solidão nocturna; discos que imaginávamos quase sombrios surgem-nos, de repente, do nada, como partilháveis. E descobre-se que se dermos tempo suficiente a qualquer disco ele lá encontrará uma forma de se encaixar no nosso horário, de se acomodar a uma hora, um momento específico, o que estraga a imagem que um tipo durante anos tinha criado de si: a de um gajo que sabe sempre o que ouvir e não ouvir, em cada situação, a cada hora.

Imaginem que tínhamos este cuidado com as pessoas. Que nos púnhamos a pensar "Se calhar este fulano funciona melhor em almoços mensais que em jantares trimestrais". Seria, pelo menos, confuso. Podia alterar a hierarquia das casas, a lista de compras do supermercado. Ainda daríamos por nós a ter de concordar com gente de direita ou ir à bola com benfiquistas. A descobrir que gente que desprezamos pode parecer-nos sensata enquanto amigos do peito nos parecem egoístas até à medula. Se pensarmos muito nisso, a nossa playlist humana não é tão científica quanto pensamos. Não é nada fácil, isto de escolher um disco para cada hora do dia."

2 comentários:

Fátima disse...

ser pago para ouvir música parece divertido mas deve ser complicado. é como com o cinema. toda a gente espera que se diga algo inteligente e às vezes é tão vago. o mesmo com as pessoas. sempre difícil definir. e ter horas para tudo

Marina disse...

Genial