domingo, 28 de outubro de 2007

Para o meu avô (que não tem computador)

O meu avô sempre foi uma estrelinha. Desde pequenina que o achava mais brilhante e diferente das outras pessoas. Tinha por ele um fascínio daqueles que se tem pelos livros de fadas e magos. O meu avô nunca foi velhinho como os outros avôs, não tinha muitas maleitas, adorava ler e contava histórias como ninguém. Acho que se diz de todos os avôs, que são contadores de histórias, mas o meu é mesmo. Conta-as em catapuda, pegadas umas nas outras, com um entusiasmo contagiante. Repete as histórias vezes sem conta até já as sabermos de cor, mas eu nunca me canso delas - e não é só para ser simpática.
Teve uma vida tão cheia de aventuras que dava um livro. Mas não quer escrever, apenas contar. São histórias de mistério e suspanse, passadas na ditadura. Quando se passavam bilhetes às escondidas e se aprendiam línguas proíbidas em caves de restaurantes. Quando "ser livre" era ler livros interditos, era criticar, reunir e discutir. E depois há as histórias infinitas do teatro, das digressões pelo país (e pelo mundo), as peripécias nos palcos, nos ensaios, com os amigos, com os patrões, com o público.
O meu avô sabe todas as lengalengas e os poemas mais famosos.

"Batem leve, levemente, como quem chama por mim... Será chuva? Será gente? Gente não é certamente, e chuva não bate assim..."

Teve sempre um espírito divertido e bem disposto. Como se diz na família "está sempre a fazer teatro". Quando eu era pequena ensinava-me que o melhor truque para enganar alguém é parecermos descontraídos. Era assim que levava no bolso paezinhos do pequeno almoço dos hóteis das férias para comermos ao lanche. Mas só ele é que sabia fazer aquele ar de que nada se passa, que para mim foi sempre um mistério.
Agora o meu avô está mais avô e mais velhinho. Tem dificuldade em ver e andar. Está triste e queixa-se. Não das dores mas daquilo que elas roubam: a independência, a actividade, a vida de saudáveis correrrias. Agora tudo se resume a um dia-a-dia de rotina morna. E todos lhe dizem "Ó senhor Gilberto, com essa idade isso é normal, até está muito bom!". Mas ele não se conforma. Irrita-se e bate o pé. Ninguém o preveniu que as pernas lhe iam faltar. Ele queria ter vida de artista, não vida de moldura. E eu olho para ele e sinto vontade de lhe dar alguma coisa. Alguma coisa que o ajude a resgatar o passáro que bate furiosamente as asas dentro da gaiola. O corpo que não deixa o espírito saltar de alegria. Uma prisão de pernas e braços que anestesia a alma até ficar dormente. Até não se levantar mais.
Tenho a certeza que o meu avô nunca se vai render. Vai sofrer até ao fim nesta luta com a velhice. Não vai deixar que façam com ele conversa de mantinha no colo, nem dos programas de televisão que "fazem companhia". Nem vai jogar às cartas com os senhores lá da rua.
Barricou-se numa réstia de juventude e não abre mão. Eu sei que vai ser sempre assim. De espada em punho afugenta as canjas de galinha e meias quentinhas. Quer ir ao cinema e ao teatro, quer jantar com os amigos e dançar no ano novo. Sabe que não pode, mas não se rende. E eu olho para ele com medo daquela angústia, mas sei, lá no fundo, que é um herói.

5 comentários:

Anónimo disse...

carai dos avôs!

Fátima disse...

=) este é sem sombra de dúvidas o melhor texto que tens aqui.. agora sou eu que pergunto "como é que escreves coisas assim?". o teu avô é mesmo diferente e fixe, daqueles da geração de 70, lutadores e idealistas. nem sabia! quero estórias dele =)

Anónimo disse...

É o avô dos jornais, das histórias e dos ovos Kinder e nós somos as netas preferidas =)

beijinho da prima*

Marina disse...

Eu nunca o conheci e sempre o adorei. Quem não idolatra o avo fixe da ines? =)

Anónimo disse...

Parabéns nesita!!!! ta mt bom :) continua a escrever assim e ainda superas os records de vendas da JK Rowling!! ñ desistas!! bjinho gand!! do Valter ;p