domingo, 21 de outubro de 2007

Quem disse que há regras?

O quê, quem, onde , quando, como, porquê. Entrada, Lead, Objectivo, Claro, assim e assado.
São cheias de regras as reportagens, cheias de protocolos disfarçados. Nada de poesia, poucas metáforas, sem mariquices. Não estamos cá para comover ninguém.
Hoje li uma das reportagens que mais me agarrou. Curiosa a expressão, já que era sobre "agarrados". Sobre como se vive numa comunidade terapeutica. Publicada na Única, que não publica qualquer coisa. Quem diria que isto se podia fazer?

"A esta hora há gente a chutar. Garrote apertado, corpos magros como Cristo na cruz. Ele é um igual. Mas sabe-se sem saída - o tratamento ou a vida. Alberto é um tremor. Uma ferida junto à boca, a mãe de braço ao peito, o candeeiro arrancado do tecto, o lugar vazio do microondas, da varinha mágica. Coisas levadas à bruta, trocadas por um chuto. Perdeu 20 quilos, a cor dos olhos. «Fiz tanta merda, 43 anos de merda!» A esta hora, coça-se, engasga-se: «Cheguei ao fundo». Deu o último caldo de manhã, contorce-se por outro. Mas resiste. A ressaca é o primeiro passo: «Meu Deus, não aguento mais! Ajudem-me!».

(...)

«Chamo-me Rafaela, sou alcoólica e dependente química. Preciso de me responsabilizar pelo meu tratamento senão morro.» Tem 33 anos, rugas finas emolduram-lhe o olhar claro, nos últimos dois este três vezes na Creta. Recaíu, recai sempre. Desde que apanhou a primeira moca aos 13, com comprimidos roubados à mãe. Veio a primeira bebedeira, o primeiro charro, foi-se o futuro. Aos 15 já a menina da Linha comprava pó «numa onda fofinha». Aos 16 «fazia maletos», roubos por esticão, a acelerar na LC «bonitinha» que os pais lhe haviam oferecido.
Depois, foi a montanha-russa. Ora subir às salas da faculdade, ora descer aos becos do tráfico. Os anos a passarem e ela a vê-los passar. Mais uma viagem, mais uma corrida. A filha a nascer. Ficar bem.Outra recaída. Ficar mal. Sexo para ter pó, pó para ter sexo. A heroína, fumar até acabar, «heroin my love and my life», arranjar mais, sete dias inteiros no sofá, a heroína, consumir e vomitar e beber iogurte líquido, moca, ressacar sozinha, arranjar um gajo para safar, a heroína, e a filha, qual filha?, a heroína.

(...)

Guarda tantas mágoas esta casa, tantas culpas, que as paredes falam. Sem brancas, as cenas quotidianas. Como as do alcoólico que bebeu Old Spice. A do toxicodependente que tentou a morte no lavatório. A do que se masturbou até ficar em chaga. A da que saíu para uma «overdose». As visitas dos que partiram e nunca mais tocaram em drogas. «Isto
é um microondas de emoções». Palavra de coordenador terapêutico. «Às vezes explode». "

P.S. A comunidade terapêutica chama-se Creta e é na Parede. E eu nunca ouvi falar, o que é curioso.

3 comentários:

Fátima disse...

bem.. quem disse que uma reportagem não pode ser uma poética espiral de emoções? adorei!

Anónimo disse...

wow! que brutal!!!

Anónimo disse...

respondendo à fátima, quem nos disse isso foi: o josé rodrigues dos santos, o nelson traquina e tds os livros que lemos sobre jornalismo e afins.
Mas eu tb me questiono constantemente para que é que nos ensinaram essas e outras coisas q tal..