Em 2007 comecei a escrever um texto que ficou nos rascunhos. Era a propósito do 50º aniversário de casamento de uns primos em segundo grau. Dizia eu que "em todas as famílias há alguém com quem gozamos" e na minha eram eles. Não é que não gostássemos deles, mas "sem filhos e na casa dos 70, são cheios de protocolos e etiqueta. Fazem discursos nos aniversários e decidem onde as pessoas se vão sentar à mesa". Naquele dia do re-casamento deram "uma missa com jantar xpto no Pateo Alfacinha. Lá vamos nós, o grupo do costume, cheios de piadinhas e sarcasmo, a gozar com o ar mumificado de alguns convidados. A mim doiam-me os pés de estar empoleirada nos saltos de verniz e o sorriso ja plastico já cansava". O objectivo deste texto que deixei a meio era confessar que apesar de tudo isto tinha ficado comovida durante aquela missa e aquele discurso um tanto piroso. Porque estes meus primos viam-se à 50 anos, moravam juntos, comiam juntos, passavam férias juntos, serões, manhãs, uma vida inteira e continuavam a querer fazê-lo. Queriam mesmo celebrá-lo. Era óbvio que gostavam muito um do outro e isso para mim é comovente. Havia uma ternura ali que me impressionou. Apesar da sua casa parecer um museu, de lerem a biografia de Cavaco Silva como desporto e comerem com muitos talheres, estes primos eram felizes no seu companheirismo e isso é coisa que quase ninguém pode realmente dizer sem estar a embelezar um bocado o quadro.
O primo Orlando e a prima Rosa eram aqueles que ofereciam molduras de prata, ou guarda jóias de pele. Faziam telefonemas de cortesia. Estavam sempre bem dispostos. Para mim e para a minha prima, quase da mesma idade, estar com eles era sinónimo de um dia de risinhos em surdina. Devíamos ter uns 15 anos quando ao almoço o primo Orlando se referiu ao ex-namorado da sobrinha como "esquisito" para dizer que ele era gay. Quase rompemos numa gargalhada escandalosa e ainda hoje fazemos piadas com isso ("pois sabes, mas é que esse é esquisito, escusas de estar a olhar para ele").
O primo Orlando e a prima Rosa estão na casa dos 70 mas ninguém diria. A minha mãe diz que é por não terem filhos. Com menos preocupações, a beleza perdura, diz-se. Nunca os vi como idosos e quando me perguntavam pela sua idade dizia sempre "sessenta e poucos".
Há uns tempos que andavamos a combinar um encontro com eles, pois há muito que não nos víamos. Os almoços acabavam sempre cancelados. Há dois ou três dias a prima Rosa ligou cá para casa para falar com os meus pais mas eles não estavam e ela não deixou recado.
Hoje fui ao funeral do primo Orlando. O cancro foi mais forte do que ele. A sua mulher, antes altiva e sorridente, jovem para a idade, pareceu-me ontem e hoje um fantasma de olhos encovados. O cabelo um tanto desalinhado, desta vez vi-lhe até os brancos. As rugas afinal estavam lá, fundas. Precisou de ajuda para andar. Não consigo imaginar o que é enterrar o amor de uma vida inteira.
Esta é a quarta pessoa que morre na minha família este ano. É verdade que a morte coloca as coisas em perspectiva, mas talvez já bastasse de reflexão espiritual.
2 comentários:
:( que história admirável... há amores que parecem mesmo de filme... e agora não sei se te dê os sentimentos, nunca sei o que dizer :\
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