Tenho um amigo que é um profundo mistério. Amigo é termo abusivo. Conheço-o. Tomámos café, conversámos sobre livros, sobre actualidade, sobre os transportes públicos. Eu achava-o acomodado com a vida, preguiçoso. Gostava da sua ironia, não dos seus cigarros. Desprezava o seu cinismo. Gostava dos seus gostos literários. Odiava a sua inércia. Não me despertava sentimentos fortes. Era mais uma pessoa no meu dia-a-dia.
Como o via todos os dias achava que lhe tinha tirado a pinta. Como é normal, fazemos um perfil mental das pessoas que conhecemos e principalmente das que podemos observar de perto: o que comem, o que vestem, o que fizeram no fim-de-semana. Chumbava todas as categorias.
No entanto uma peça não encaixava. Um dia li-o. E não sabia como interpretar aquilo. A sensiblidade, a fluídez, a beleza das palavras. A dor das palavras. A harmonia. Caraças, ele escrevia mesmo bem. Não só escrevia bem como escrevia como outra pessoa. E por mais que eu puxasse pela cabeça não conseguia associar o autor à pessoa. Não rimavam de forma alguma. Por vezes tentava descortinar as palavras escritas numa das nossas conversas banais. Nada, não havia ali nada. No entanto, os textos, sempre.
Evito lê-lo para não sentir este desconforto. Mas hoje, clique aqui, clique ali, deparei-me com mais uma das suas obras de arte. Palavras que me doeram como se fossem minhas. Reforcei o reconhecimento daquele talento. E novamente não compreendi.
1 comentário:
poderia saber de quem falas, sentindo o mesmo que sentes, não fosse o detalhe da distância. mas a ideia é a mesma: o orador e o escritor têm pouco em comum.
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